quinta-feira, 21 de maio de 2015

O QUE É FATO SOCIAL?

O QUE É FATO SOCIAL?
Émile DURKHEIM
Antes de indagar qual o método que convém ao estudo dos fatos
sociais, é necessário saber que fatos podem ser assim chamados. A
questão é tanto mais necessária quanto esta qualificação é utilizada
sem muita precisão. Empregam-na correntemente para designar
quase todos os fenômenos que se passam no interior da sociedade,
por pouco que apresentem, além de certa generalidade, algum
interesse social. Todavia, desse ponto de vista, não haveria por
assim dizer nenhum acontecimento humano que não pudesse ser
chamado de social. Cada indivíduo bebe, dorme, come, raciocina e a
sociedade tem todo o interesse em que estas funções se exerçam de
modo regular. Porém, se todos esses fatos fossem sociais, a
Sociologia não teria objeto próprio e seu domínio se confundiria com
o da Biologia e da Psicologia.
Na verdade, porém, há em toda sociedade um grupo
determinado de fenômenos com caracteres nítidos, que se distingue daqueles estudados pelas outras ciências da natureza.
Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo ou de
cidadão, quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico
deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e
nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos que me
são próprios, sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa
de ser objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através
da educação. Contudo, quantas vezes não ignoramos o detalhe das
obrigações que nos incumbe desempenhar, e precisamos, para sabê-
Io, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Assim também
o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da
vida religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele. O
sistema de sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o
sistema de moedas que emprego para pagar as dívidas, os
instrumentos de crédito que utilizo nas relações comerciais, as
práticas seguidas na profissão, etc., etc., funcionam
independentemente do uso que delas faço. Tais afirmações podem
ser estendidas a cada um dos membros de que é composta uma
sociedade, tomados uns após outros. Estamos, pois, diante de
maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a
propriedade marcante de existir fora das consciências individuais.
Esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exteriores
ao indivíduo, são também dotados de um poder imperativo e coercitivo, em virtude do qual se lhe impõem, quer queira, quer não.
Não há dúvida de que esta coerção não se faz sentir, ou é muito
pouco sentida quando com ela me conformo de bom grado, pois
então torna-se inútil. Mas não deixa de constituir caráter intrínseco de
tais fatos, e a prova é que se afirma desde que tento resistir. Se
experimento violar as leis do direito, estas reagem contra mim de
maneira a impedir meu ato se ainda é tempo; com o fim de anulá-Io e
restabelecê-Io em sua forma normal se já se realizou e é reparável;
ou então para que eu o expie se não há outra possibilidade de
reparação. Mas, e em se tratando de máximas puramente morais?
Nesse caso, a consciência pública, pela vigilância que exerce sobre a
conduta dos cidadãos e pelas penas especiais que têm a seu dispor,
reprime todo ato que a ofende. Noutros casos, a coerção é menos
violenta; mas não deixa de existir. Se não me submeto às
convenções mundanas; se, ao me vestir, não levo em consideração
os usos seguidos em meu país e na minha classe, o riso que
provoco, o afastamento em que os outros me conservam, produzem,
embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma
pena propriamente dita. Noutros setores, embora a coerção seja
apenas indireta, não é menos eficaz. Não estou obrigado a falar o
mesmo idioma que meus compatriotas, nem a empregar as moedas
legais; mas é impossível agir de outra maneira. Minha tentativa
fracassaria lamentavelmente, se procurasse escapar desta
necessidade. Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar
utilizando processos e técnicas do século passado; mas, se o fizer,
terei a ruína como resultado inevitável. Mesmo quando posso
realmente me libertar destas regras e violá-Ias com sucesso, vejo-me
sempre obrigado a lutar contra elas. E quando são finalmente
vencidas, fazem sentir seu poderio de maneira suficientemente
coercitiva pela resistência que me opuseram. Nenhum inovador, por
mais feliz, deixou de ver seus empreendimentos se chocarem contra
oposições deste gênero.
Estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta
caracteres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de
pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de
coerção em virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte, não
poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, pois consistem
em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos,
que não existem senão na consciência individual e por meio dela.
Constituem, pois, uma espécie nova e é a eles que deve ser dada e
reservada a qualificação de sociais. Esta é a qualificação que lhes
convém; pois é claro que, não tendo por substrato o indivíduo, não
podem possuir outro que não seja a sociedade: ou a sociedade
política em sua integridade, ou qualquer um dos grupos parciais que
ela encerra, tais como confissões religiosas, escolas políticas e
literárias, corporações profissionais, etc. Por outro lado, é apenas a
eles que a apelação convém; pois a palavra social não tem sentido definido senão sob a condição de designar unicamente fenômenos
que não se englobam em nenhuma das categorias de fatos já
existentes, constituídas e nomeadas. Estes fatos são, pois, o domínio
próprio da Sociologia. É verdade que o termo coerção, por meio do
qual o definimos, corre o risco de amedrontar os zelosos partidários
de um individualismo absoluto. Como professam que o indivíduo é
inteiramente autônomo, parece-Ihes que o diminuímos todas as
vezes que fazemos sentir que não depende apenas de si próprio.
Porém, já que hoje se considera incontestável- que a maioria de
nossas idéias e tendências não são elaboradas por nós, mas nos
vêm de fora, conclui-se que não podem penetrar em nós senão
através de uma imposição; eis todo o significado de nossa definição.
Sabe-se, além disso, que toda coerção social não é necessariamente
exclusiva com relação à personalidade individual. (...)
Esta definição do fato social pode, além do mais, ser confirmada
por meio de uma experiência característica: basta, para tal, que se
observe a maneira pela qual são educadas as crianças. Toda a
educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças
maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam
espontaneamente, observação que salta aos olhos todas as vezes
que os fatos são encarados tais quais são e tais quais sempre foram.
Desde os primeiros anos de vida, são as crianças forçadas a comer,
beber, dormir em horas regulares; são constrangidas a terem hábitos
higiênicos, a serem calmas e obedientes; mais tarde, obrigamo-Ias a
aprender a pensar nos demais, a respeitar usos e conveniências,
forçamo-Ias ao trabalho etc. Se, com o tempo, esta coerção deixa de
ser sentida, é porque pouco a pouco dá lugar a hábitos, a tendências
internas que a tomam inútil, mas que não a substituem senão porque
dela derivam. É verdade que, segundo Spencer, uma educação
racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança agir
em plena liberdade; mas como esta teoria pedagógica não foi nunca
praticada por nenhum povo conhecido, não constitui senão um
desiderato pessoal, não sendo fato que possa ser oposto àqueles
que expusemos atrás. Ora, estes últimos se tomam particularmente
instrutivos quando lembramos que a educação tem justamente por
objeto formar o ser social; pode-se então perceber, como que num
resumo, de que maneira este ser se constitui através da história. A
pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão
do meio social tendendo a moldá-Ia à sua imagem, pressão de que
tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e
intermediários. (...)
Chegamos assim a conceber de maneira precisa qual o domínio
da Sociologia, o qual não engloba senão um grupo determinado de
fenômenos. O fato social é reconhecível pelo poder de coerção
externa que exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos; e
a presença deste poder é reconhecível, por sua vez, seja pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que
o fato opõe a qualquer empreendimento individual que tenda a
violentá-Io. Todavia, podemos defini-Io também pela difusão que
apresenta no interior do grupo, desde que, de acordo com as
precedentes observações, se tenha o cuidado de acrescentar como
característica segunda e essencial que ele existe independentemente
das formas individuais que toma ao se difundir. Nalguns casos, este
'último critério é até mesmo mais fácil de aplicar do que o anterior.
Com efeito, a coerção é fácil de constatar quando ela se traduz no
exterior por qualquer reação direta da sociedade, como é o caso em
se tratando do direito, da moral, das crenças, dos usos, e até das
modas. Mas, quando não é senão indireta, como a que exerce uma
organização econômica, não se deixa observar com tanta facilidade.
Generalidade e objetividade combinadas podem então ser mais
fáceis de estabelecer. A segunda definição não constitui senão uma
forma diferente que toma a primeira: pois o comportamento que
existe exteriormente às consciências individuais só se generaliza
impondo-se a estas.
Poder-se-ia, todavia, perguntar se esta definição é completa.
Com efeito, os fatos que nos forneceram a base para ela são todos
eles modos de agir; são de ordem fisiológica. Ora, existem também
maneiras de ser coletivas, isto é, fatos sociais de ordem anatômica
ou morfológica. A Sociologia não se pode desinteressar daquilo que
concerne ao substrato da vida coletiva. No entanto, o número e a
natureza das partes elementares de que é composta a sociedade, a
maneira pela qual estão dispostas, o grau de coalescência a que
chegaram, a distribuição da população na superfície do território, o
número e a natureza das vias de comunicação, a forma das
habitações etc., não parecem, a um primeiro exame, passíveis de se
reduzirem a modos de agir, de sentir e de pensar.
Contudo, em primeiro lugar, apresentam estes diversos
fenômenos o mesmo traço que nos serviu para definir os outros. Do
mesmo modo que as maneiras de agir de que já falamos, também a maneiras de ser se impõem aos indivíduos. De fato, quando
queremos conhecer como está uma sociedade dividida politicamente,
como se compõem estas divisões, a fusão mais ou menos completa
que existe entre elas, não é com o auxílio de uma investigação
material e por meio de observações geográficas que poderemos
alcançá-Io; pois estas divisões são morais, ainda quando apresentam
algum ponto de apoio na natureza física. É somente através do direito
público que se torna possível estudar tal organização, pois é ele que
a determina, assim como determina nossas relações domésticas e
cívicas. Tal organização não é, pois, menos obrigatória do que outros
fatos sociais. Se a população se comprime nas cidades em lugar de
se dispersar nos campos, é porque existe uma corrente de opinião
uma pressão coletiva que impõe aos indivíduos esta concentração.
Não podemos escolher a forma de nossas casas, nem a de nossas
roupas; pois uma é tão obrigatória quanto a outra. As vias de
comunicação determinam de maneira imperiosa o sentido em que se
fazem as migrações interiores e as trocas, e mesmo até a intensidade
de tais trocas e tais migrações, etc., etc. Por conseguinte, haveria, no
máximo, possibilidade de acrescentar à lista de fenômenos que
enumeramos como apresentando o sinal distintivo do fato social uma
categoria a mais, a das maneiras de ser; e corno aquela enumeração
nada tinha de rigorosamente exaustiva, a adição não era
indispensável.
Mas não seria nem mesmo útil; pois tais maneiras de ser não
passam de maneiras de agir consolidadas. A estrutura política de
uma sociedade não é mais do que o modo pelo qual os diferentes
segmentos que a compõem tomaram o hábito de viver uns com os
outros. Se suas relações são tradicionalmente estreitas, os
segmentos tendem a se confundir; no caso contrário, tendem a se
distinguir. O tipo de habitação a nós imposto não é senão a maneira
pela qual todo o mundo, em nosso redor - e em parte as gerações
anteriores -, se acostumaram a construir as casas. As vias de
comunicação não passam de leitos que a corrente regular das trocas
e das migrações, caminhando sempre no mesmo sentido, cavou para
si própria, etc. Sem dúvida, se os fenômenos de ordem morfológica
fossem os únicos a apresentar esta fixidez. poder-se-ia acreditar que
constituem uma espécie à parte. Mas as regras jurídicas constituem
arranjos não menos permanentes do que os tipos de arquitetura e, no
entanto, são fatos fisiológicos. A simples máxima moral é
seguramente mais maleável; porém, apresenta formas muito mais
rígidas do que os meros costumes profissionais ou do que a moda.
Existe toda uma gama de nuanças que, sem solução de continuidade,
liga os fatos de estrutura mais característicos a estas livres correntes
da vida social que não estão ainda presas a nenhum molde definido.
O que quer dizer que não existem entre eles senão diferenças no
grau de consolidação que apresentam. Uns e outros não passam de
vida mais ou menos cristalizada. Pode, sem dúvida, ser mais interessante reservar o nome de morfológicos para os fatos sociais
concernentes ao substrato social, mas sob a condição de não perder
de vista que são da mesma natureza que os outros. Nossa definição
compreenderá, pois, todo o definido, se dissermos: É fato social
toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior; ou, ainda, que é geral ao
conjunto de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui
existência própria, independente das manifestações individuais
que possa ter.
ATIVIDADES

1 -Durkheim afirma que não há nenhum acontecimento humano que não pudesse ser chamado de social, mas qual seria o problema se considerássemos todos os fatos do dia a dia como fatos sociais ?
2 - Para Durkheim qual o papel DA educação?
3 - Para Durkheim como é a relação entre o individuo e a sociedade?        

4 - Durkheim diz que os fatos sociais são coercitivos. Explique o que significa isso e de exemplos.
5 -  Qual o papel da sociologia para Durkheim? Explique
6 - Tendo por base o texto elabora uma definição de FATO SOCIAL